Um machado, mão firme, tempo, saber e respeito.
Em sintonia com a natureza, os tiradores adentram-se na floresta para extrair a casca do sobreiro, com perícia e humildade. Em cada campanha, a extração da cortiça, chamada tiradia, é um exemplo único de cooperação, onde homem e natureza se fortalecem mutuamente.
A cortiça cresce de dentro para fora, a partir do entrecasco, e extrai-se da base da árvore para o topo, começando cá em baixo, na “unha” como lhe chamam os tiradores. Também é assim neste ofício: começa-se por baixo, como “novel”, e não é de um ano para o outro que se aprende. São precisos pelo menos três anos enquanto aprendiz, e há quem diga que só ao fim de um ciclo inteiro de nove anos – o tempo que um sobreiro leva a regenerar a sua casca, para que possa ser extraída de novo – se pode realmente dominar a arte da tiradia, chegando a mestre. Os tiradores mais experientes asseguram que numa arte complexa, misto de firmeza e delicadeza (é preciso tirar pranchas tão grandes quanto possível, mas é preciso não ferir a árvore, o que exige cuidado e critério) está-se sempre a aprender.
Na floresta, onde chegam em grupos de várias dezenas de homens pela fresca, os tiradores menos experientes abrem bem os olhos. Os sobreiros são árvores majestosas, abrindo os seus braços para a luz da manhã. Impressionam, com o seu porte e serenidade, e a primeira coisa que impõem é respeito. Quem trabalha neste ofício – uma das profissões mais bem pagas do setor agrícola – sabe bem que a árvore é que manda. É preciso observar, testar, integrar. Perceber qual a melhor maneira de abordar a árvore, para que ela “dê” a cortiça, isto é, a deixe desprender-se com relativa facilidade. Quem os vê tão decididos, golpeando a casca da árvore num ritmo compassado, não faz ideia do grau de precisão implicado. Mas um pouco mais de força pode deitar tudo a perder, quando o machado bate na madeira faz um som diferente. É isso que é preciso evitar.
Mestria na tiradia
A introdução de tecnologia veio facilitar o processo. A máquina, utilizada para fazer as incisões na casca do sobreiro, está equipada com um sensor de humidade, que pára a lâmina quando esta se aproxima da parte de madeira, o casco, evitando ferir a árvore. Ao princípio, os trabalhadores desconfiavam destes aparelhos, mas hoje agradecem. A introdução de máquinas no processo de extração da cortiça, em complemento ao trabalho manual, vem facilitar a tarefa, porque reduz o tempo de extração e aumenta a produtividade, permitindo extrair mais arrobas por dia.
A arte, essa, mantém-se intacta. É uma tradição de séculos, que se transmite de geração em geração nesta região do mundo, a bacia do Mediterrâneo, onde crescem os sobreiros. Os tiradores mais experientes aprenderam muitas vezes com os pais, e passam esse saber aos seus filhos e outros jovens. Apesar da dureza e exigência da profissão – “um trabalho que não dá para fazer online”, diz um dos tiradores – a idade média dos trabalhadores ronda os 40 anos. Há jovens que se juntam, que querem aprender. Alguns nunca viram um machado antes de ali chegar, mas começam como todos: como molheiros, recolhendo as pranchas de cortiça que se soltam de cada sobreiro antes de as empilharem no camião.
Os tiradores trabalham aos pares, munidos cada um do seu machado, a única ferramenta utilizada neste ofício de precisão, e que serve tanto para fazer incisões na casca como para a desprender, colocando o cabo entre a “pele” de cortiça e o tronco. Começam pelo tronco e vão subindo, usando uma escada para chegar ao topo da árvore e muitas vezes empoleirando-se nos grossos ramos para descortiçar essa parte também. Nenhum sobreiro é deixado para trás, e em cada um a cortiça é extraída com cuidado e respeito, até ao fim. É essa extração que vai permitir que a árvore se regenere, que a casca volte a crescer. Um processo que exige tempo: a primeira extração de cortiça – cortiça virgem - faz-se 25 anos após o plantio, e daí de nove em nove anos. Só à terceira colheita se extrai cortiça “amadia”, com as características exigidas para produzir rolhas naturais.
Ano após ano, sempre entre maio e agosto, cada campanha de descortiçamento completa um ciclo para abrir um novo. Antigamente, os homens chegavam a passar os três meses de campanha na floresta, junto aos sobreiros, dormindo e comendo por ali. Montava-se uma cozinha improvisada, as mulheres preparavam as refeições e traziam a água, havia bailes até. Hoje, algumas coisas mudaram. Outras permanecem exatamente na mesma. Na mão de cada tirador, em cada suave movimento, renova-se uma arte antiga, um pacto entre tempo, saber e respeito pela natureza.