Nome incontornável do design português, Filipe Alarcão esteve envolvido em projetos de referência lançados pela Amorim à volta da cortiça, como a coleção Materia, que coordenou, e mais recentemente como curador do premiado “The Cork Book”. Da primeira memória da cortiça a um conhecimento profundo do material, a história de uma descoberta que nunca para de surpreender o designer.
A minha primeira memória da cortiça não é curiosamente a observação de uma rolha, talvez porque é um objeto do nosso quotidiano e por isso mesmo mais familiar. Assim, lembro-me em criança de entrar em alguns prédios de época de Lisboa que tinham as paredes e por vezes até o parquet do pavimento em aglomerado de cortiça, e ficar intrigado e curioso com este material. Tinha um aspeto vagamente aparentado com a madeira, apesar de ter uma textura e um toque muito diferentes. Só mais tarde relacionei este aglomerado de cortiça com a casca do sobreiro.
A cortiça agrega uma série de características que encontramos dispersas em outros materiais naturais e é isso que a torna tão especial. Para mim, a característica que gosto de destacar, e que penso ser única, é esta possibilidade de utilizar um recurso natural produzido por um ser vivo vegetal, a árvore, sem precisarmos com isso de o aniquilar. Na verdade, a extração da cortiça que é feita de nove em nove anos na árvore é um processo extremamente benéfico para o seu crescimento.
Antes de ter feito a direção criativa da coleção Materia com a experimentadesign, nunca tinha trabalhado com cortiça ou integrado o material em nenhum dos meus projetos, por falta de oportunidade, mas também por ter um conhecimento limitado das suas potencialidades. Associava a cortiça apenas às rolhas e aos aglomerados que para mim, funcionavam mais como uma pele, um material de acabamento, do que como uma matéria plástica que poderia ser utilizada de outros modos. Pouco tempo depois do lançamento desta coleção apresentei numa exposição que fiz no MUDE - Museu do Design e da Moda Colecção Francisco Capelo, uma peça integralmente fabricada em cortiça e desenvolvida com o apoio da Amorim, em que explorava algumas características da cortiça que entretanto tinha descoberto, como por exemplo a possibilidade de trabalhar a forma a partir de blocos maciços fresados. A curadoria do livro “The Cork Book” foi uma fase importantíssima para mim porque me permitiu ficar com um conhecimento muito aprofundado sobre o material, as suas potencialidades e aplicações em campos tão diversos, assim como entender todo o sistema, quase cosmológico, que permite a exploração e aproveitamento da cortiça, o ecossistema do montado, a circularidade dos seus processos de transformação e a altíssima tecnologia que está embebida nestes processos. A maior descoberta foi esta: um material natural aparentemente simples como a cortiça é capaz de gerar tanta investigação e conhecimento, aplicável em tantos campos e desde tempos tão antigos. Nesse aspeto considero que o livro The Cork Book nos dá uma visão completa deste material, visão essa que não era conhecida por quem não estivesse diretamente envolvido na produção de produtos derivados da cortiça. Foi esse o desafio que nos foi lançado pela Amorim e cujo resultado penso foi amplamente conseguido.
O desafio que apresentei aos designers que participaram na coleção foi, no fundo, o mesmo que lancei a mim próprio no meu duplo papel de curador e projetista, e que era ter a capacidade de olhar para a cortiça como uma matéria-prima e não como um material complementar, acessório, em objetos de uso quotidiano. Por essa razão foi pedido a todos que usassem a cortiça como material base de todas as peças ainda que fosse possível a integração de outros materiais associados, como veio a acontecer em muitas peças. Em segundo lugar era importante que fossem trabalhadas novas tipologias de produtos, que estes fossem de pequena ou média escala e produzidos segundo processos de fabrico relativamente acessíveis. Deviam explorar individualmente algumas das características próprias da cortiça, tais como o seu peso, capacidade e resiliência, flutuabilidade, absorção acústica, capacidade de isolamento térmico, etc., e associar essas características a objetos e funções que tivessem uma componente emocional lúdica. Mesmo o processo de pesquisa e seleção dos participantes teve em consideração estas premissas, tendo sido escolhidos os autores que melhor as podiam explorar.
São muito importantes todas as aplicações que representam ou conduzem a um avanço tecnológico, ambiental ou social e a fileira da cortiça está presente em todas estas áreas. Em sentido contrário quero também destacar o desuso que se tem feito da cortiça apenas como visual, porque a cortiça está na moda, em tantos produtos e gadgets de fraca qualidade que vemos à venda em pouco por toda a parte. Existem também muitas aplicações que ainda estão numa fase embrionária em termos de investigação ou do seu processo de produção que poderão também vir a ser importantes, e há todo um campo aberto de exploração de novos caminhos e aplicações. Durante a conceção do livro “The Cork Book”, identifiquei algumas áreas cuja aplicação é muito interessante, mas que acabaram por ficar de fora do livro, porque caso contrário este ficaria com muito mais do que as cerca de 300 páginas que tem. Destas destaco o que tem sido feito no âmbito da biomedicina, como por exemplo a investigação que explora as propriedades asséticas e cicatrizantes da suberina -a seiva da cortiça- em produtos como pensos líquidos, ou a utilização da cortiça pela indústria de cosmética com a introdução de finíssimos pós de cortiça como elemento inerte nos cremes em substituição das argilas, por ser um material com propriedades anti-alergénicas.
Complementando as respostas anteriores, o potencial da cortiça pode ser expandido juntando o conhecimento e investigação com a capacidade de formular novas ideias e novos cenários de aplicação mais a vontade e capacidade de as implementar.
As credenciais de sustentabilidade inerentes à cortiça são na verdade aquelas que sabemos hoje serem necessárias para combater as alterações climáticas. Desta forma, a cortiça e todo o sistema circular de produção que lhe está associado é um ótimo exemplo de boas práticas na procura do correto equilíbrio entre Natureza e mundo artificial, podendo estas práticas ser replicadas noutros contextos produtivos e com outras matérias-primas naturais no futuro.
O designer industrial Filipe Alarcão formou-se na Faculdade de Belas Artes de Lisboa e na Domus Academy de Milão, onde permaneceu após concluir o Mestrado a trabalhar com Michele De Lucchi. Ativo no seu estúdio em Lisboa, desenvolve os seus próprios projetos de mobiliário, equipamento urbano, iluminação, cerâmica e vidro para a Vista Alegre/Atlantis, Asplund, TemaHome, Schréder, Larus e Loja da Atalaia, entre outros. Para algumas destas empresas, assumiu a direção artística de linhas de produtos, função que desempenhou também num projeto da Corticeira Amorim, como coordenador da coleção Materia (2010), em parceria com a experimentadesign. Foi responsável pela coordenação editorial do livro The Cork Book (2018). É Professor-Adjunto de Design na ESAD-CR.Distinguido com o Prémio Nacional de Design em 1994, promovido pelo Centro Português de Design, Filipe Alarcão é também coautor do novo Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Alguns dos seus projetos estão expostos na coleção permanente do MUDE – Museu do Design e da Moda de Lisboa.